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Canabinoides: a nova fronteira da analgesia e regeneração em Odontologia

Oswaldo Scopin e Cláudia Herrera Tambeli compartilham conhecimento no uso de canabinoides em Odontologia.

Todo cirurgião-dentista precisa entender a dor, independentemente da área de atuação. Não importa se é decorrente de uma pulpite irreversível, de uma alveolite, de um pós-operatório de uma cirurgia ortognática ou uma difusa dor orofacial, a dor é nossa realidade e precisamos entender e falar sobre ela.

Com a evolução das ciências médicas e do entendimento cada vez mais preciso da fisiologia humana, novas opções têm surgido, ampliando horizontes em nossa área de atuação. Para falar sobre esse assunto, convidei a renomada e experiente professora doutora Cláudia Herrera Tambeli para compartilhar com os leitores da revista a forma como o uso dos canabinoides está mudando as abordagens e as técnicas nesse tópico de extrema importância para a Odontologia. Veja a seguir o interessante texto de quem estuda de maneira séria essa nova fronteira a ser explorada.

A busca por alternativas eficazes e seguras no controle da dor e na promoção da regeneração dos tecidos tem criado uma nova fronteira de pesquisa e aplicação: os canabinoides. Esses compostos encontrados na planta cannabis têm despertado um interesse crescente devido às suas propriedades analgésicas e regenerativas. Além dessas propriedades, os canabinoides também apresentam efeitos ansiolíticos, ajudando no controle da ansiedade e do estresse. Eles também possuem propriedades antioxidantes, protegendo as células dos danos causados pelos radicais livres. Além disso, estudos têm mostrado que alguns canabinoides possuem atividade antimicrobiana, auxiliando no combate a infecções1.

Ao longo da história, a cannabis tem sido utilizada terapeuticamente em diferentes culturas ao redor do mundo, com registros de uso de aproximadamente 2.700 a.C., na China2. É importante destacar que, historicamente, sua proibição não foi apoiada pela comunidade científica da época, e muito menos baseada em evidências científicas, mas em interesses comerciais, políticos e em preconceito. A cannabis contém mais de 100 fitocanabinoides, sendo o THC (tetrahidrocanabinol) e o CBD (canabidiol) os fitocanbinoides mais estudados e utilizados terapeuticamente. Esses compostos interagem com o sistema endocanabinoide do corpo, modulando a resposta à dor e à inflamação3. Trata-se de uma planta que acompanha a nossa evolução tão de perto que o nosso corpo produz moléculas “irmãs” das moléculas delas.

Para compreender o papel dos canabinoides na analgesia e na regeneração, é fundamental conhecer o sistema endocanabinoide. Ele é composto pelos endocanabinoides anandamida e 2-araquidonilglicerol (2-AG), que são moléculas produzidas pelo nosso corpo, as “irmãs” das moléculas encontradas na cannabis, pelas enzimas de síntese e degradação, e pelos receptores canabinoides. Os receptores canabinoides (CB1 e CB2) estão presentes em todo o nosso corpo, incluindo o sistema nervoso, os tecidos ósseo e muscular, a mucosa oral, o tecido periodontal, a polpa dental, entre outros tecidos alvos do tratamento odontológico1.

Os canabinoides interagem com esses receptores, modulando a resposta à dor e à inflamação, estimulando a regeneração tecidual, além de reduzir a ansiedade, melhorar o sono e apresentar efeitos antimicrobianos.

Nesse contexto, as possíveis indicações terapêuticas na Odontologia incluem os mais diversos tipos de dor orofacial, como disfunção temporomandibular (DTM) dolorosa, síndrome da ardência bucal, dor neuropática pós-implante, pós-tratamento endodôntico, pós-cirúrgica, dor neuropática pós-herpética, neuralgia do trigêmeo, câncer na região orofacial devido à redução da dor, efeito poupador de opioides e dos efeitos colaterais da quimioterapia, mucosite, periodontite, ansiedade odontológica, distúrbio do sono e bruxismo1,4. Entre elas, a indicação para a qual existe maior robustez de evidências cientifícas é a dor crônica. Os canabinoides apresentam vantagens em termos de relação benefíciosegurança quando comparados com várias medicações utilizadas no controle de dores crônicas, como demonstrado nas dores neuropáticas, uma vez que eles contribuem para uma melhor qualidade vida e possuem um melhor perfil de efeitos colaterais5.

Além disso, eles não causam efeitos colaterais importantes, como constipação e depressão respiratória associados ao uso de opioides, e os problemas gastrointestinais causados pelo uso crônico dos anti-inflamatórios não esteroidais. Um melhor perfil de efeitos colaterais é uma grande vantagem. Afinal, quando um paciente com dor orofacial crônica busca tratamento, ele não busca apenas o alívio da dor, ele quer a vida dele de volta, o que dificilmente consegue com outros analgésicos devido aos inúmeros efeitos adversos. Outra vantagem é que pesquisas recentes têm demonstrado que os canabinoides possuem propriedades regenerativas no tecido ósseo e outros tecidos orofaciais, como polpa dentária e mucosa oral1.

No tecido ósseo, já há evidências de que o canabidiol estimula as células-tronco mesenquimais a migrarem para o local da lesão óssea e se diferenciarem em osteoblastos, estimulando a regeneração óssea6. No controle da dor pós-fratura óssea, os resultados de um estudo pré-clínico sugerem que o canabidiol e o canabigerol, um outro fitocanabinoide, poderiam substituir os anti-inflamatórios não esteroidais, considerando que, além de promoverem analgesia, ao mesmo tempo promovem a regeneração óssea7. Além disso, um estudo clínico demonstrou que o canabidiol atenua marcadores da reabsorção óssea, indicando que ele apresenta propriedades protetivas no tecido ósseo8. Essas propriedades têm despertado interesse inclusive na área de Implantodontia e Cirurgia, além da Periodontia, com a vantagem extra de seu efeito antimicrobiano semelhante ao da clorexidina9, podendo inclusive ser utilizado na forma de enxaguatório bucal sem apresentar os efeitos colaterais de alteração de paladar e manchas nos dentes provocados pela clorexidina.

De acordo com a regulamentação atual, o cirurgião-dentista pode prescrever os canabinoides dentro de sua área de atuação. Portanto, como prescritores, mais cedo ou mais tarde seremos questionados sobre o assunto e procurados pelos pacientes. O conhecimento sobre as indicações, contraindicações, interações farmacológicas e possíveis efeitos adversos, e o uso adequado dos canabinoides na Odontologia é de extrema importância para oferecer um tratamento eficaz e seguro aos pacientes.

No mercado, encontramos produtos com diferentes composições, formas de apresentação e concentrações. Portanto, é fundamental que os cirurgiões-dentistas estejam familiarizados com a composição dos produtos à base de canabinoides, bem como com as diferentes formas de apresentação, vias de administração e dosificações disponíveis para serem prescritores da terapia como um todo, e não de um produto específico de uma marca.

Com relação à composição, os produtos “full spectrum” possuem todos os componentes da cannabis (fitocanabinoides, terpenos e os flavonoides). O “broad spectrum” é semelhante ao “full spectrum”, exceto pelo fato de não conter THC, os isolados podem ser apenas CBD ou THC, e há também produtos com CBD e THC com diferentes proporções, CBD e CBG (canabigerol), e CBD e CNB (canabinol). No caso das dores orofaciais, o óleo “full spectrum” é mais efetivo do que os isolados devido ao efeito entourage ou em comitiva, que corresponde à cooperação entre os diferentes componentes da planta, o que favorece seu efeito terapêutico.

As principais formas de apresentação de interesse odontológico incluem óleos, tinturas, cápsulas, gomas, cremes, spray oral, enxaguatório bucal, adesivo, creme dental, além da linha cosmética com CBD de interesse na área de Harmonização Orofacial.

É importante lembrar que o sistema endocanabinoide de cada um é único, portanto, cada paciente pode responder de forma diferente aos canabinoides, sendo importante ajustar a dosagem de acordo com as necessidades individuais.

Além disso, há outras formas de ativação do sistema endocanabinoide, que incluem o uso de dipirona10 palmitoiletanolamida, curcumina, extrato de semente de uva, aromaterapia, acupuntura, laserterapia e exercício físico3. Portanto, a combinação dessas formas naturais de ativação do sistema endocanabinoide com a terapia canabinoide pode potencializar seu efeito terapêutico. Por exemplo, a combinação de palmitoiletanolamida com canabinoides potencializa o efeito analgésico dos canabinoides, o que sugere a possibilidade de uso de doses menores3.

Em conclusão, os canabinoides representam uma nova fronteira da analgesia e regeneração tecidual. Suas inúmeras propriedades terapêuticas têm despertado interesse e esperança em pacientes e profissionais da saúde. Diante do aumento progressivo das evidências científicas e das vantagens dos canabinoides como um analgésico regenerativo, é essencial que os profissionais da saúde se atualizem sobre essa abordagem terapêutica. Como cirurgiõesdentistas e prescritores da terapia canabinoide, devemos expandir nosso conhecimento e explorar essa nova fronteira, adotando práticas baseadas em evidências científicas para oferecer opções de tratamento inovadoras e melhorar a qualidade de vida dos nossos pacientes.

Referências

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  2. Crocq MA. History of cannabis and the endocannabinoid system. Dialogues Clin Neurosci 2020;22(3):223-8.
  3. Tambeli CH, Martins GA, Barbosa SL, Machado TT. Abordagem integrativa do uso terapêutico da cannabis nas dores orofaciais. Brazilian J Pain 2023;6(s1):49-53.
  4. Tanganeli JP, Haddad DS, Rode S de M, Tambeli CH, Grossmann E. The endocannabinoid system and orofacial pains: updates and perspectives. Brazilian J Pain 2023;6(suppl.2):131-8.
  5. Nutt DJ, Phillips LD, Barnes MP, Brander B, Curran HV, Fayaz A et al. A multicriteria decision analysis comparing pharmacotherapy for chronic neuropathic pain, including cannabinoids and cannabis-based medical products. Cannabis Cannabinoid Res 2022;7(4):482-500.
  6. Kamali A, Oryan A, Hosseini S, Ghanian MH, Alizadeh M, Baghaban Eslaminejad M et al. Cannabidiol-loaded microspheres incorporated into osteoconductive scaffold enhance mesenchymal stem cell recruitment and regeneration of critical-sized bone defects. Mater Sci Eng C Mater Biol Appl 2019;101:64-75. Doi: 10.1016/j.msec.2019.03.070. Epub 2019 Mar 24.
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  8. Kulpa J, Eglit G, Hill ML, MacNair L, Yardley H, Ware MA et al. Serum markers of bone turnover following controlled administration of two medical cannabis products in healthy adults. Cannabis Cannabinoid Res 2022;8. Doi: 10.1089/can.2022.0181.
  9. Vasudevan K, Stahl V. Cannabinoids infused mouthwash products are as effective as chlorhexidine on inhibition of total-culturable bacterial content in dental plaque samples. J Cannabis Res 2020;2(1).
  10. Gonçalves dos Santos G, Vieira WF, Vendramini PH, Bassani da Silva B, Fernandes Magalhães S, Tambeli CH et al. Dipyrone is locally hydrolyzed to 4-methylaminoantipyrine and its antihyperalgesic effect depends on CB2 and kappa-opioid receptors activation. Eur J Pharmacol 2020;874:173005. Doi: 10.1016/j.ejphar.2020.173005. Epub 2020 Feb 11.