Analisando o desgaste dental do ponto de vista antropológico, é possível considerá-lo um mecanismo natural, dinâmico e inevitável que deve ser controlado de maneira conservadora, ética e preventiva.
O British Museum, localizado em Londres, na Inglaterra, é considerado o mais antigo museu nacional do mundo. Ele foi inaugurado em 1753 e, portanto, tem 270 anos de existência. Eu sou aficcionado por museus e, sempre que viajo, tento visitar algum. Na última visita a Londres, estive na exposição permanente egípcia, e nela há uma interessante sequência de crânios datados de aproximadamente 1.500 anos atrás.
Dois destes crânios tiveram minha atenção especial e despertaram uma curiosidade peculiar. Os dois crânios eram de adultos do sexo masculino que viveram no mesmo período histórico. O primeiro tinha a dentição intacta, perto dos 30 anos, com anatomia e posicionamento quase perfeitos. O segundo, possivelmente perto do 50 anos, tinha também todos os dentes, porém com desgaste dental severo com exposição da dentina. Um dos dentes, o segundo pré-molar inferior esquerdo (elemento 35), tinha uma cavitação severa. Considerando a expectativa de vida da época, podemos dizer através de observações que nossa dentição foi “desenhada” para suportar cerca de 50 anos. Essa colocação, obviamente, não pode ser considerada “científica”. É apenas uma observação.
A evolução do conhecimento humano nos últimos séculos fez a expectativa de vida mais do que dobrar, se considerarmos dados do século 19. Portanto, é indiscutível dizer que o ser humano vive mais. Esse aumento de expectativa de vida está criando novos desafios em políticas de saúde pública, que elevam o custo de vida principalmente na idade adulta. Desta forma, a tendência é que haja muito mais idosos no mundo.
Assim, podemos dizer que o custo da saúde bucal irá aumentar consideravelmente. Temos um cenário interessante a ser explorado neste espaço, nas clínicas e consultórios odontológicos. É evidente e nítido que houve um aumento expressivo do número de casos de pacientes jovens com desgaste dental. Essa patologia, se assim podemos dizer, é multifatorial, causada por atrição, erosão, perimólise e outros fatores que antecipam a exposição dentinária para antes dos 30 anos de idade.
Considerando que os seres humanos estão vivendo mais, o desgaste dental precoce elevará consideravelmente o custo do tratamento odontológico para pacientes a partir de 60 anos. Minha preocupação é que muitos destes pacientes, que estão vivendo mais, talvez não tenham condições financeiras para realizar tratamentos de alto custo. Essa conjunção de fatores econômicos associados à mudança de comportamento e hábitos das novas gerações podem estar criando um “futuro grupo de pacientes” com péssimas condições de saúde bucal e sem condições de arcar com os custos de uma reabilitação oral.
Outro ponto importante é citar o exagero de procedimentos estéticos1 restauradores feitos em pacientes muito jovens, que podem acelerar esse cenário de perda dental precoce. A Odontologia e a Medicina caminham cada vez mais juntas. A integração e a proximidade entre as áreas já estão ocorrendo em diversas instituições de vanguarda ao redor do mundo. Nessa realidade, ao indicar um tratamento ou qualquer intervenção, o cirurgião-dentista deve considerar todos os fatores envolvidos na tomada de decisão para que tudo seja exposto de maneira clara e ética para o paciente, considerando o benefício a longo prazo em virtude do aumento da expectativa de vida.
Em minha vida profissional, cada vez mais me preocupo com a prevenção de doenças bucais. Explico e enfatizo sempre para meus pacientes que procedimentos considerados “simples” por muitos profissionais, como uma profilaxia, podem ter mais impacto na saúde geral do que um procedimento que envolva intervenção.
Estamos em um momento no qual o diagnóstico precoce de patologias bucais, associado a procedimentos de mínima intervenção, pode mudar o jogo em um futuro próximo para o benefício de grande parte da população. É necessária uma mudança de currículo, tanto da graduação quanto da pós-graduação, para que a nova geração de cirurgiões-dentistas tenha uma visão global do paciente.
Voltando ao desgaste dental e analisando do ponto de vista antropológico, é possível considerá-lo um mecanismo natural, dinâmico e inevitável2 que, se não controlado de maneira conservadora, ética e preventiva, pode levar a um aumento no número de pacientes mutilados por patologias bucais e abordagens iatrogênicas.
A variação do padrão de desgaste é multifatorial e deve ser analisada com cuidado e precisão para orientação do paciente e tomada de decisão do profissional. As imagens abaixo mostram exemplos clínicos desta variação de padrão de desgaste. Temos uma herança, um legado inevitável como seres humanos, que é o desgaste dental. Esse mecanismo inerente e presente só ocorre se conseguirmos manter os dentes em boas condições durante toda a vida, e essa é a missão da Odontologia atual: controlar o legado inevitável de nossa existência.
Referências
- Hirata R, Sampaio CS, de Andrade OS, Kina S, Goldstein RE, Ritter AV. Quo vadis, esthetic dentistry? Ceramic veneers and overtreatment – a cautionary tale. J Esthet Restor Dent 2022;34(1):7-14.
- Kaidonis JA.Tooth wear: the view of the anthropologist. Clin Oral Investig 2008;12(suppl.1):S21-6.
Oswaldo Scopin de Andrade
Mestre e doutor em Clínica Odontológica e Prótese Dentária – Unicamp; Pós-graduação em Prótese e Oclusão – NYU College of Dentistry, EUA; Coordenador do curso de especialização em Odontologia Estética – Centro Universitário Senac/SP.
Orcid: 0000-0002-0857-4629.