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A real eficácia de enxaguantes bucais contra o SARS-CoV-2

Em entrevista, Karem López Ortega fala sobre as pesquisas já publicadas sobre enxaguantes bucais e sua real eficácia contra o coronavírus.

Existem muitos enxaguantes bucais com indicações distintas, como o tratamento adjuvante da doença periodontal e para prevenção da cárie dentária, por exemplo. Além disso, o uso de enxaguatórios tem sido recomendado pré-procedimentos odontológicos por órgãos de classe do Brasil e do mundo com o intuito de reduzir a transmissão do patógeno SARS-CoV-2.

Para nos ajudar a compreender a ação desses produtos, tive a satisfação de entrevistar a Profa. Dra. Karem López Ortega, do departamento de Estomatologia da USP. Nessa conversa, ela nos falou sobre sua experiência e sobre as pesquisas já publicadas sobre antissépticos bucais e sua real eficácia contra o coronavírus.

Victor Montalli – O estudo desenvolvido pelo seu grupo de pesquisa mudou a maioria dos protocolos que indicavam, sem evidências científicas, o uso do peróxido de hidrogênio (água oxigenada). Você poderia nos contar um pouco sobre esse estudo?
Karem López Ortega – Quando o peróxido de hidrogênio começou a ser divulgado como um exaguatório que possuiria a propriedade de diminuir a carga viral do SARS-CoV-2 na saliva, eu e colegas do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, da Universidade Federal de Santa Catarina, do Hospital das Clínicas da USP, da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e da Universidade Católica de Portugal nos reunimos para explicar, em uma carta publicada na Clinical Oral Investigations, por que não existia plausibilidade biológica nesse tipo de afirmação. Vírus são parasitas intracelulares e necessitam entrar em uma célula e usar seu maquinário para replicar-se. Ainda que uma substância fosse capaz de eliminar os vírions que estão livres na saliva, esta seria recontaminada rapidamente, já que as células infectadas liberariam novos vírions. Cabe lembrar que o SARS-CoV-2 infecta uma grande quantidade de tipos celulares diferentes no organismo todo. Um enxaguatório que pretendesse eliminar o vírus da saliva deveria, portanto, apresentar substantividade, característica que não está presente no peróxido de hidrogênio. Para demonstrar que a informação sobre o peróxido de hidrogênio carecia de lastro científico, fizemos uma revisão sistemática da literatura, que foi publicada na Journal of Hospital Infection e que demonstrou que não havia nenhum trabalho publicado em toda a literatura que tivesse testado e comprovado a capacidade virucida do peróxido de hidrogênio. Em outubro, nosso trabalho foi utilizado pela Anvisa para modificar o entendimento do órgão sobre a indicação do uso do enxaguante em bochechos pré-procedimento. Mesmo antes dessa mudança, outros órgãos colegiados já haviam aceitado nossas colocações e modificado suas publicações sobre o tema.

VM – O uso do enxaguante bucal com solução antisséptica pode diminuir a quantidade de microrganismos presentes na boca e, com isso, diminuir o risco de transmissão de doenças?
KLO – Existe uma grande quantidade de diferentes microrganismos e de doenças infecciosas que podem afetar a mucosa oral. Para avaliar a atividade antisséptica de um enxaguatório e relacioná-la ao risco de transmissão de uma doença, é imprescindível levar em consideração as características peculiares de cada doença (agente etiológico, forma de transmissão, curso clínico da doença etc.). Cada microrganismo se comporta de forma diferente e nem sempre podemos dizer que a remoção dos microrganismos da mucosa oral ou da saliva está diretamente relacionada à redução do risco de transmissão de uma doença. A principal forma de transmissão do SARS-CoV-2 acontece pelo ar, através da sua inalação. Ainda que o vírus esteja presente na saliva, o ar exalado do pulmão é o suficiente para infectar uma pessoa. Nesse ar, existem os aerossóis, pequenas partículas que contêm vírus e não são visíveis, e que podem ficar suspensas no ambiente por horas. As gotículas de saliva, que são maiores e mais volumosas, se precipitam ao solo rapidamente, diminuindo a chance de infectar uma pessoa. Assim, mesmo que existisse um antisséptico que diminuísse a quantidade de vírus livres na saliva, o ar exalado (que vem do pulmão) continuaria abrigando a maior possibilidade de transmissão.

VM – Existem evidências científicas da ação virucida de enxaguantes bucais contra o vírus SARS-CoV-2?
KLO – Até o momento, identificamos apenas um número reduzido de trabalhos que testaram alguns enxaguantes bucais in vitro. Esse tipo de metodologia não traz respostas sobre a ação virucida ao ser utilizado em pessoas. As substâncias testadas com metodologias in vitro dificilmente conseguem o mesmo resultado quando aplicadas in vivo, particularmente quando se trata de vírus. Como disse anteriormente, os vírus infectam e se replicam dentro das células, e tal situação não pode ser reproduzida em testes in vitro. Até o presente momento, só identificamos um trabalho publicado testando um enxaguante bucal (peróxido de hidrogênio) in vivo, e a conclusão dos autores foi de que o enxaguante não deve ser utilizado em bochechos pré-procedimento com o objetivo de diminuir a carga viral do SARSCoV-2, pois o produto não apresentou esse tipo de resultado no estudo.

VM – Alguns produtos lançados recentemente prometem ser capazes de evitar a progressão da Covid-19. O que você acha?
KLO – A Covid-19 é uma doença multissistêmica que afeta diversos órgãos e tecidos. Sabemos que podem ser afetados os pulmões, o intestino, os rins, o sistema nervoso central e o sistema cardiovascular, entre outros. Ao infectar o organismo, o SARS-CoV-2 provoca uma reação imune exacerbada com a liberação de grande quantidade de citocinas inflamatórias, além de um estado de hipercoagulabilidade. Os sintomas que os pacientes apresentam estão relacionados com os danos nos órgãos que são afetados diretamente pelo vírus, com a inflamação e a formação de trombos. É difícil entender qual seria o papel que um enxaguante bucal teria dentro deste contexto e qual seria o mecanismo que esse enxaguante utilizaria para evitar a progressão da Covid-19.