Além da demora para trocá-los e da interferência na estabilidade emocional, houve aumento da procura e escassez da oferta de EPIs na Odontologia.
Em um artigo recente do New York Times, a Odontologia foi considerada a profissão de risco “número um” para a transmissão do novo coronavírus1, apesar dos EPIs. Com efeito, foi recomendado o adiamento das consultas, com exceção dos tratamentos comprovadamente urgentes e inadiáveis. Apesar do reconhecimento que esta medida de saúde pública merece, é preciso também entender as sérias implicações econômicas e financeiras para as empresas e os profissionais do setor2.
Em alguns países, foi rapidamente compreendida a gravidade da situação e foram tomadas medidas de apoio. A título de exemplo, no Canadá, no Reino Unido e na Irlanda foram estabelecidos planos de resposta econômica para apoiar as empresas, e algumas clínicas odontológicas também recorreram a estes fundos para conseguir pagar salários e outros compromissos3. No entanto, antes de optar por este tipo de apoio, talvez seja importante que os empresários analisem as razões que os levaram a necessitar de financiamentos externos tão rapidamente.
Em um artigo publicado em 2018 sobre a situação econômica e financeira das clínicas odontológicas em Portugal – ou seja, sem os efeitos da pandemia –, percebeu-se que se tratava de um setor de risco reduzido, com capacidade superior de gerar liquidez em comparação aos demais segmentos da economia.
Enquanto cerca de 30% das microempresas portuguesas tinham resultados negativos (EBITDA < 0) e ativos insuficientes para fazer face aos passivos (capitais próprios < 0), apenas 15% das clínicas odontológicas estavam nessa mesma situação. Em relação à liquidez imediata (dinheiro disponível para honrar os compromissos correntes de curto prazo), o indicador apontava uma taxa de 31,1% para as microempresas portuguesas, enquanto as clínicas de Odontologia contavam com liquidez de 136,1%, conforme aponta o estudo4-5.
Ainda assim, mais do que falar do passado, importa agora entender qual vai ser o futuro da profissão. Até porque, dado o risco de transmissão do vírus por aerossóis, a prática clínica vai sofrer alterações significativas devido à implementação obrigatória dos equipamentos de proteção individual6.
Pelo menos até ser desenvolvida uma vacina eficaz, terminou o tempo em que se podia atender pacientes com batas de manga curta, com a máscara caída abaixo do nariz e sem óculos de proteção. Para quem ainda não experimentou, os equipamentos de proteção individual (EPI) recomendados causam um tremendo efeito negativo na produtividade do profissional. Em primeiro lugar, demoram muito tempo para ser trocados entre consultas. Considerando que vestir e despir os equipamentos pode levar cerca de 15 minutos, trata-se de uma hora perdida a cada quatro horas de consulta. Também são quentes, causam transpiração e, mesmo com todos os cuidados e rigor, há sempre uma sensação de insegurança de que o vírus pode “entrar por qualquer lado”. Tudo isso interfere na estabilidade emocional do profissional e na sua capacidade de tomar as melhores decisões de forma rápida, como fazia antigamente.
Acrescenta-se ainda que, neste momento, existe uma “guerra” no mundo todo para aquisição de EPIs. O resultado do aumento da procura e da escassez da oferta é uma brutal elevação do preço, o que terá efeito na margem de lucro do tratamento.
Em uma primeira fase, dados os consecutivos adiamentos de consultas, é provável que a Endodontia seja um dos tratamentos dentários mais procurados. Na Tabela 1 (acima), encontra-se o valor calculado para a margem de lucro do tratamento endodôntico de um molar, realizado em sessão única por um profissional especialista e um assistente, incluindo todos os equipamentos de proteção individual. Aqui mostramos uma tabela resumida, e não os valores por item do protocolo.
Em um tratamento endodôntico, o custo do material de proteção passará a representar 57% do custo total, um acrescimento de 689% em relação ao custo original. Para um tratamento de 150 euros, a margem decresceu 15%. À primeira vista, até parece que a margem se mantém interessante quando comparada com outros negócios. Contudo, é preciso ainda considerar os “fornecimentos e serviços externos”, e os “gastos com pessoal” da empresa.
De acordo com os dados do Banco de Portugal para o setor de Odontologia, em 2018, a margem sobre o custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas foi, em média, 89%. Contudo, os fornecimentos e serviços externos, e os gastos com pessoal representavam, respectivamente, 44,7% e 28,4% sobre o valor das vendas e serviços prestados. O resultado antes de gastos de financiamento e impostos (EBIT) foi, em média, 11,8% sobre as vendas5.
Esta nova realidade e as suas implicações devem ser consideradas por todos os profissionais de Saúde Bucal. A redução das margens de lucro dos tratamentos dentários, devido ao material de proteção, é um dado adquirido. A este fenômeno serão adicionados a diminuição do número de consultas e o aumento do tempo de cada atendimento. Por conseguinte, caso as clínicas não ajustem a sua estratégia e o preço praticado, podem correr sérios riscos em relação aos resultados. Embora esta seja a realidade em Portugal, é provável que não seja muito diferente em outros países, como no Brasil. Assim, essa metodologia pode ser aplicada para cada tratamento. Antes de procurar ajuda externa, analise bem as demonstrações financeiras da empresa.
Referências
1. The New York Times. The workers who face the greatest coronavirus risk [On-line]. Disponível em https://www.nytimes.com/interactive/2020/03/15/business/economy/coronavirus-worker-risk.html. Acesso em: 21-4-2020.
2. Ferneini EM. The financial impact of Covid-19 on our practice. J Oral Maxillofac Surg 2020 (pii: S0278-2391(20)30355-4).
3. Farooq I, Ali S. Covid-19 outbreak and its monetary implications for dental practices, hospitals and healthcare workers. Postgrad Med J 2020 (DOI:10.1136/postgradmedj-2020-137781).
4. Arrobas F. Tesouraria… até quando? Jornal Dentistry [On-line]. Disponível em https://www.jornaldentistry.pt/edicoes/ojd72-abril-2020. Acesso em 21-4-2020.
5. Banco de Portugal. Quadros do setor [On-line]. Disponível em <https://www.bportugal.pt/QS/qsweb/Dashboards>. Acesso em: 21-4-2020.
6. Meng L, Hua F, Bian Z. Coronavirus disease 2019 (Covid-19): emerging and future challenges for dental and oral medicine. J Dent Res 2020;99(5):481-7.
Coordenação:
Guilherme Saavedra
Professor assistente do Depto. de Materiais Odontológicos e Prótese, e professor da especialidade de Prótese Dentária do programa de pós-graduação em Odontologia Restauradora – ICT-Unesp; Professor visitante da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa, em Portugal.
Orcid: 0000-0001-7108-0544.
Autor convidado:
Fernando Arrobas
Cirurgião-dentista, consultor, professor de Métodos Quantitativos e pesquisador associado da Universidade de Lisboa, em Portugal.