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Terapia celular avançada na Odontologia Regenerativa: uma revolução em curso

Terapia celular na Odontologia: o uso de células-tronco abriu um novo horizonte nas pesquisas e caminha para que sua utilização na prática clínica seja uma realidade, com soluções viáveis, eficazes e seguras na promoção de saúde.


Desde os primórdios da civilização, os seres humanos buscam caminhos que levem à longevidade, sempre associada à expectativa de qualidade de vida satisfatória. Inúmeros foram os avanços alcançados ao longo da história, nos mais diversos segmentos da sociedade, que contribuíram de forma direta e decisiva para que a existência humana fosse prolongada.

Um trabalho científico publicado pelo National Center for Health Statistics, nos Estados Unidos, em 2009, sob o título “Longevity Trends in Selected Populations”, apontou para um aumento médio de 30 anos na expectativa de vida global entre 1950 e 2010 (Figura 1). Avanços sociais, culturais, educacionais, políticos e científicos foram imperativos para que essa realidade da baixa longevidade pudesse ser modificada ao longo do tempo.

Figura 1 – Tendências de longevidade em populações selecionadas. (Fonte: Population Division of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat (2007). World Populations Prospects: The 2006 Revision, Highlight, New York: United Nations. National Center for Health Statistics, 2009, EUA.)

Nesse escopo, é consenso que, a partir do conhecimento embarcado, medidas de prevenção, controle e tratamento, cada vez mais seguras, eficazes e eficientes, para as chamadas doenças infectocontagiosas influenciaram sobremaneira para o aumento substancial da expectativa de vida de forma global. No entanto, esse mesmo estudo demonstrou um significativo aumento nos índices de mortalidade relacionados a doenças degenerativas, principalmente associadas ao processo de envelhecimento. Ou seja, a máquina humana passou a falhar em outras pontas, necessitando da atenção das comunidades científica e clínica para o enfrentamento dessa nova realidade da humanidade que, segundo a OMS, terá dois bilhões de idosos até 2050 (20% da população que habitará o planeta).

Novas ferramentas e estratégias para as práticas médicas e odontológicas ganharam expressão sob o propósito de atender as demandas prementes impostas pelo crescente avanço das doenças degenerativas. A Bioengenharia, a Engenharia Genética, a Biologia Molecular e a Terapia Celular – especialmente por meio do uso de células-tronco (Figura 2) –, dentre outras, representam algumas dessas importantes estratégias que abriram um novo horizonte de pesquisa e desenvolvimento básico e translacional visando à entrega de soluções viáveis, eficazes e seguras à promoção de saúde.

Figura 2 – Células-tronco cultivadas a partir de biopsia do periósteo do palato humano – patente # BR 10 2021 003512 9. (Imagem: R-Crio Criogenia).

Ao longo das duas últimas décadas, o conhecimento nas áreas da Medicina e Odontologia regenerativas permitiu o estabelecimento de recomendações internacionais, visando à entrega de soluções terapêuticas seguras e reprodutíveis frente às demandas da sociedade.

Em 2018, o Brasil teve a publicação do importante e aguardado marco regulatório, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que foi revisado em 2021 e que estabeleceu as diretrizes sobre as boas práticas em células humanas para uso terapêutico e pesquisas clínicas, as regras para a realização de ensaios clínicos com produto de terapia avançada investigacional e ainda dispôs sobre o registro de produtos de terapia avançada.

A partir da homologação do marco regulatório composto por três resoluções, as RDCs 508, 506 e 505, publicadas em 2021 e frutos de um longo e produtivo período de consultas públicas em que participaram pesquisadores, clínicos, laboratórios, instituições de ensino e pesquisa, hospitais, dentre outros, foram estabelecidos os caminhos para um novo modelo de pensamento em prática médica e odontológica voltados à promoção de saúde baseada em preceitos regenerativos.

A RDC 508/2021 estabeleceu as diretrizes para que um laboratório, sob a designação de centro de processamento celular, atue em conformidade com as normas internacionais para manufatura laboratorial, por meio das boas práticas laboratoriais (BPL), obtendo, a partir de diferentes fontes de tecidos doadores (polpas dentais, periósteo do palato, gordura e medula óssea, por exemplo), processando, qualificando e disponibilizando células-tronco mesenquimais e hematopoiéticas multipotentes adultas para uso em terapias regenerativas.

A RDC 506/2021 tratou das normas correspondentes ao uso dessas células em centros de terapia celular, por meio de estudos clínicos aprovados junto aos órgãos competentes a esse grau de complexidade, representados no Brasil pelo Comitê Regional de Ética em Pesquisa (CEP), Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ou em terapias devidamente comprovadas quanto à segurança e eficácia, e registradas junto à Anvisa como produto de terapia avançada (PTA).

A RDC 505/2021 trouxe os caminhos para que, a partir do trabalho para o preparo das células em um centro de processamento celular em acordo com a RDC 508/2021, em atendimento à estrutura para uso dessas células, representada pelo centro de terapia celular conforme a RDC 506/2021, possa, ao final de um estudo clínico comprobatório para segurança, eficácia e custo versus efetividade, ser registrado como novo produto de terapia avançada, que contempla iniciativas envolvendo o uso de células-tronco, células editadas geneticamente e produtos de Bioengenharia junto à Anvisa sob a classificação de medicamento biológico, devendo conter bula, registro de efeitos adversos, posologia e tudo o que for inerente a um medicamento farmacêutico convencional (Figura 3).

Figura 3 – Esquema representativo de um medicamento biológico produzido pela Bioengenharia. (Ilustração: R-Crio Criogenia).


A equipe multidisciplinar intitulada “Stem Cell Research Group” é formada por biólogos, geneticistas, cirurgiões-dentistas, advogado, doutores em Biologia Celular, além de mestres em Regeneração Tecidual e Implantodontia. A missão do grupo é disseminar e produzir conhecimento no âmbito da terapia celular e regeneração tecidual.

De acordo com o grupo, os principais desafios a serem vencidos ao longo da atual década para que a terapia celular seja consolidada na Odontologia estão relacionados aos processos de validação, registro e operacionalização dos produtos de terapia avançada como medicamentos biológicos no tratamento de doenças degenerativas, quadros inflamatórios agudos e danos teciduais decorrentes de traumas. Para isso, urge uma profunda revisão dos conteúdos acadêmicos voltados à formação de profissionais na área da Saúde e que considere os vértices do processo regenerativo como pilares a serem desvendados e entendidos com profundidade e assertividade por parte dos promotores de saúde.

Vivemos a era da chamada Medicina e Odontologia Translacional, em que a tradução e disseminação do conhecimento estabelecido em bancada está sendo levado à prática clínica, elevando a promoção de saúde a resultados até então inimagináveis. Por meio desse caminho, será possível romper o estigma que relaciona as terapias celulares, com ou sem edição genética, apenas a possibilidades futuras, quase comparáveis a um roteiro de ficção científica. Certamente, esse caminho não é ficção, mas sim a mais pura expressão da evolução no conhecimento científico e da transposição deste conhecimento para o tratamento de diferentes condições clínicas.

MAS, AFINAL, O QUE SÃO CÉLULAS-TRONCO E O QUE ESPERAR DELAS NA PRÁTICA CLÍNICA?

As células-tronco são a ignição que permite que a organização estrutural e funcional da vida aconteça. No momento da concepção, quando há a união de um óvulo a um espermatozoide, surge ali a primeira célula-tronco, denominada primordial ou totipotente, com grande capacidade de multiplicação e diferenciação, isto é, com capacidade para gerar qualquer tecido.

Com o andamento do desenvolvimento fetal, conta-se com a atuação de células-tronco ditas pluripotentes, com capacidade para gerar a maioria dos tecidos, porém não a placenta. Um indivíduo de 70 kg deverá conter aproximadamente 37 trilhões de células, originadas a partir de uma única célula-tronco primordial, e essas irão se especializar em mais de 200 tipos distintos de células, com funções qualificadas e distribuídas entre quatro tecidos: epitelial, conjuntivo, muscular e nervoso.

No entanto, ao longo de toda a nossa vida, ainda contamos com uma reserva de células-tronco com algum grau de comprometimento para determinadas funções, normalmente caracterizadas como multipotentes, ou seja, com capacidade de diferenciação limitada ao folheto germinativo que a deu origem (Figura 4).

Figura 4 – Esquema de distribuição das células-tronco humanas em seus vários estágios de evolução. (Fonte: Pelegrine et al. (2013). “Células Tronco na Implantodontia” (1a ed.), editora Napoleão, Brasil).


Em razão de sua origem, as células-tronco permanecem alojadas em sítios específicos, denominados pericitos, até que sejam demandadas para alguma atividade regenerativa (Figura 5). Essas células, assim como todas as outras que constituem o corpo humano, envelhecem com o tempo e se tornam suscetíveis às questões inerentes ao processo de envelhecimento. Esse fato é de grande relevância quando consideramos a atuação dessas células em processos regenerativos.

Figura 5 – Células-tronco (pericitos) aguardando a demanda regenerativa. (Ilustração: R-Crio Criogenia).

Os três vértices da regeneração foram inicialmente descritos pelos pesquisadores Robert Langer e Joseph P. Vacanti em uma publicação na revista Science – 1993;260(5110). Os autores ponderaram a tríade da engenharia tecidual: 1) Células-tronco; 2) Arcabouços estruturais; e 3) Sinalizadores (Figura 6). As células-tronco representam o primeiro desses vértices, sendo protagonistas no processo regenerativo. São elas as responsáveis pelo repovoamento de toda a área acometida por uma injúria para formação de um tecido reparador morfológica e funcionalmente igual ao tecido originalmente ali presente. Os arcabouços estruturais representam o segundo vértice e são responsáveis por alojar as células ou ainda atuar como veículos de entrega para que essas cheguem e permaneçam no local de interesse, desempenhando seu papel regenerativo. O terceiro vértice, apresentado por Langer e Vacanti, refere-se aos sinalizadores (proteínas, lipídios, aminoácidos, gases, dentre outras moléculas) presentes no organismo e que dão as diretrizes acerca do papel que as células deverão ou não desempenhar.

Figura 6 – Esquema representativo da tríade da engenharia tecidual. (Ilustração: R-Crio Criogenia).

Estabelecido e harmonizado o conceito sobre os vértices do processo regenerativo, inúmeras pesquisas realizadas levaram as células-tronco a serem reconhecidas como potenciais medicamentos biológicos, com competência para indução ao processo regenerativo por ação direta e indireta, e capacidade de promover a modulação da resposta imunológica.

Boa parte dos males que permeiam a prática odontológica tem como fatores responsáveis a injúria, uma resposta inflamatória aguda exacerbada, e a degeneração tecidual progressiva, sejam provocadas por trauma, infecção, perda de um elemento dentário ou ainda um processo inflamatório crônico. A degeneração pulpar e a perda de volume ósseo pós-exodontia representam ainda hoje uma fronteira importante a ser transposta quando consideramos estratégias regenerativas. A ampliação dessas fronteiras e recursos – hoje à mão dos cirurgiões-dentistas em suas entregas terapêuticas – possui os elementos necessários para validar estratégias regenerativas que se mostrem seguras, eficazes e viáveis, sempre pautadas por evidências e amparadas por diretrizes regulatórias claras e aplicáveis.

As terapias celulares estão aí para que seja possível transformar no tempo presente a prática odontológica de forma profunda, entrando verdadeiramente na esfera regenerativa plena e em absoluta sintonia com as expectativas de toda a sociedade na eterna busca por longevidade com qualidade de vida associada.

QUAL O PAPEL DA ODONTOLOGIA NESSA NOVA ERA DA PROMOÇÃO DE SAÚDE?

A Odontologia possui um papel de protagonista nessa nova era, uma vez que fontes intraorais de tecidos (periósteo) e órgãos (polpas de dentes decíduos e permanentes) são reconhecidas pela alta qualidade das células-tronco mesenquimais ali presentes, tanto em processos regenerativos como na modulação da resposta inflamatória.

A origem dessas células-tronco mesenquimais a partir da crista neural (origem ectomesenquimal), a jovialidade das células das polpas decíduas, a facilidade para obtenção por biopsia de 3 mm do palato ou remoção do dente decíduo com 1/3 de raiz remanescente (tendo o elemento permanente subjacente 2/3 de raiz formada) – o que descaracteriza uma remoção precoce (Figura 7) – ou, ainda, em elementos permanentes hígidos com indicação para exodontia por razões ortodônticas (de terceiros molares e pré-molares, por exemplo) dão à Odontologia a condição de ser provedora da matéria-prima biológica de valor imensurável para o desenvolvimento e produção de medicamentos biológicos aplicáveis tanto na prática odontológica quanto na Medicina como um todo.

Figura 7 – Fase adequada para obtenção do dente decíduo (imagem central), com 1/3 de raiz remanescente, com a finalidade de obtenção das células-tronco. (Ilustração: R-Crio Criogenia).


Com a publicação do chamado Marco Regulatório para Terapias Avançadas, que envolve o uso de células-tronco, produtos de engenharia genética e bioengenharia, foi aberto um leque importante de oportunidades e responsabilidades para que novos caminhos sejam trilhados por profissionais da área de Odontologia.

Para exemplificar alguns dos trajetos que vêm sendo desenvolvidos, a equipe da “R-Crio Stem Cell Research Group” tem em seu rol (que, do ponto de vista dos recursos humanos, abrange clínicos e pesquisadores com diferentes formações, desde a área jurídica até a biológica) um centro de processamento celular, centros de terapia celular associados, laboratórios de pesquisa e desenvolvimento em Bioengenharia, além de instituições de ensino e pesquisa em âmbito nacional e internacional, tais como a Universidade de Laval, a Universidade da Flórida, o Kennedy Space Center International Academy, a Anadem e a Faculdade São Leopoldo Mandic, além da própria capitaneadora da equipe, a R-Crio Bioengenharia.

Isso favorece um ambiente capaz de fomentar e acelerar a chamada pesquisa translacional. Hoje, a equipe está envolvida em diferentes linhas de pesquisa que objetivam validar e homologar produtos de terapia celular oriundos de células de polpas dentais, tanto no âmbito dos tratamentos odontológicos como para regeneração do tecido pulpar e do tecido ósseo (Figura 8), assim como na Medicina, nos tratamentos das síndromes respiratórias agudas graves, na regeneração do epitélio da córnea em perdas de visão por lesões químicas da córnea e, a partir de células periosteais do palato, no tratamento da dor articular (DTM e osseoartrites) e dos quadros agudos de AVE (acidente vascular encefálico).

Figuras 8 – Fotomicrografias de espécimes (modelo animal) com o uso de células-tronco mesenquimais para regeneração pulpar (A) e óssea (B). Em A, note a formação de tecido mineralizado (inset, seta amarela) e neoformação de camada odontoblástica (inset, seta verde) em conduto radicular previamente esvaziado. Em B, note a formação de tecido ósseo primário ocorrida no centro de um defeito ósseo crítico (seta preta) e remanescentes do arcabouço de hidroxiapatita (asteriscos). Imagem: André Pelegrine.


QUAIS OS PRÓXIMOS PASSOS DA ODONTOLOGIA REGENERATIVA?

Existe um horizonte imenso a ser alcançado para que a Odontologia Regenerativa se estabeleça como um novo leito da prática profissional bem definido e fundamentado, formando, capacitando e incentivando o engajamento profissional pautado em conhecimento e senso crítico.

A comunidade odontológica conta hoje com uma estrada muito bem pavimentada e sinalizada, representada pelo marco regulatório das terapias avançadas, para que possamos trilhar e desenvolver soluções cada vez mais robustas, baseadas em evidências regenerativas em sua plenitude para toda a sociedade e isentas de dogmas. Afinal, de acordo com o ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln, “os dogmas do passado tranquilo não condizem com presente tempestuoso. Como a situação é nova, devemos pensar e agir de maneira inovadora”.

Estamos diante de uma grande revolução, caracterizada pela evolução na prática profissional, e em franco curso de colisão junto às fronteiras até então estabelecidas pelo arsenal de possibilidades terapêuticas que dispomos. É de extrema importância que a Odontologia brasileira não perca o trem dessa história e, com isso, a posição de vanguarda. Faz-se mister que a comunidade tenha uma profunda reflexão sobre o seu papel enquanto promotores de saúde em eterno aprendizado em relação ao que entregamos aos nossos pacientes.

Por fim, é possível destacar algumas dessas questões sobre as quais os especialistas devem se debruçar: as fronteiras estabelecidas pela evolução histórica da Odontologia são intransponíveis? O que existe hoje é o melhor que pode ser feito? É possível trazer essas questões a pleito de modo a fomentar as discussões científicas sob as demandas clínicas? Há senso de urgência para que os avanços aconteçam de fato e de forma translacional? Qual a participação contributiva dos profissionais junto aos conselhos e agências regulatórias competentes para que possa haver evolução e, assim, concretizar as expectativas profissionais na área da Odontologia Regenerativa?

A equipe da “Stem Cell Research Group” acredita que este seja o momento ideal para que a comunidade odontológica arregace as mangas e faça algo a mais pela terapia celular, e, consequentemente, pela humanidade. Afinal, o novo começo é sempre hoje, e o Brasil pode e deve ser protagonista nessa jornada.

Autores

André Antonio Pelegrine
Cirurgião-dentista, especialista em Periodontia, mestre em Implantodontia, doutor em Clínica Médica, professor e pesquisador da São Leopoldo Mandic.

Elizabeth Ferreira Martinez
Cirurgiã-dentista, mestra em Patologia Bucal, doutora em Biologia Celular e Tecidual, professora e pesquisadora da São Leopoldo Mandic.

José Ricardo Muniz Ferreira
Cirurgião-dentista, especialista em Periodontia, mestre em Implantologia Oral, doutor em Ciências de Materiais, fundador e diretor presidente da R-Crio Criogenia S.A.

Raul Canal
Advogado, especialista em Direito Médico, mestre em Regeneração Tecidual e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem).

Roberto Dalto Fanganiello
Biólogo/geneticista, doutor em Genética Humana, professor e pesquisador da Universidade Laval, e diretor científico da R-Crio Criogenia S.A.