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Inteligência artificial: o papel do cirurgião-dentista no uso da tecnologia

Presente no imaginário popular, a inteligência artificial já faz parte da rotina odontológica. Conversamos com cirurgiões-dentistas que já dominam a tecnologia para entender o estágio atual e as tendências para o futuro.

Por João de Andrade Neto

Em meio a uma revolução digital que toma conta da Odontologia, a inteligência artificial (IA) é mais um importante recurso que tem ganhado espaço na rotina clínica dos cirurgiões-dentistas, técnicos em prótese dentária e radiologistas. Na Reabilitação Oral, essa tecnologia avança em diversas práticas e já pode ser considerada uma realidade. Etapas de diagnóstico, fluxo digital, impressão 3D e simulações de tratamento são algumas das atividades que contam com o auxílio da ferramenta, mas ainda há um longo caminho a ser trilhado.

Em termos simples, a inteligência artificial consiste na utilização de computadores e máquinas para simular a capacidade de resolução de tarefas, problemas e tomada de decisão da mente humana. Elas são predominantemente baseadas em regras que os humanos fornecem aos programas de computador com o intuito de instruí-los a seguirem para a execução de tarefas específicas. Esses sistemas de IA são projetados para aprender com dados, reconhecer padrões e tomar decisões de maneira autônoma, formando o aprendizado de máquina (machine learning).

Enquanto já faz parte da atuação clínica de uma parte dos profissionais da Odontologia, a inteligência artificial ainda permeia o imaginário de boa parte da população. Mas, na verdade, essa ferramenta já está presente em muitas das atividades rotineiras, como nos serviços de streaming, como Netflix e Spotify, nos aplicativos de GPS, no reconhecimento facial para acesso a smartphones e aplicativos financeiros, algoritmos de redes sociais e em assistentes virtuais, como a Siri, o Google Assistente e a Alexa.

Um dos grandes debates em torno da inteligência artificial é a eventual substituição da mão de obra humana pelos computadores em um futuro próximo, uma ameaça que já se aproxima de algumas profissões. Na Odontologia, no entanto, isso não deve acontecer rapidamente. Pelo menos é o que projeta a maioria das pesquisas realizadas por renomadas instituições, como a The Economist e a Forbes, considerando que os profissionais da Saúde, incluindo cirurgiões-dentistas, trabalham com uma série de critérios subjetivos nos tratamentos ainda inalcançáveis para os algoritmos, além da relação de empatia criada com o paciente.

A equipe da revista ImplantNews conversou com cirurgiões-dentistas que já estão imersos na utilização da inteligência artificial para entender o momento atual da ferramenta nas práticas clínicas da Reabilitação Oral, assim como as tendências para um futuro próximo e, principalmente, para projetar o papel do ser humano nesta mudança de paradigma, que promete revolucionar o atendimento odontológico.

inteligência artificial
Imagem: Adobe Stock.

 

COMO INICIAR A UTILIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

A ideia de adentrar um mundo tão tecnológico pode ser desafiadora. No entanto, uma parcela de cirurgiões-dentistas brasileiros já se mostra apta a iniciar essa prática. Isso porque as ferramentas atuais de aplicação da Odontologia Digital já colocaram esses profissionais em contato com softwares e fluxos digitais que podem facilitar a entrada da IA na rotina clínica. “Quem já tem experiência com softwares mais complexos acaba tendo mais facilidade quando se depara com softwares de inteligência artificial, e o trabalho fica muito intuitivo”, explica o cirurgião-dentista Lincoln Queirós, que é especialista em Dentística e Prótese Dentária, e trabalha com Odontologia Digital há 17 anos.

Queirós conta que teve uma formação em IA com a equipe do Hospital Sírio Libanês, mas que o curso não foi especificamente sobre Odontologia. “A inteligência artificial entrou na minha vida clínica através de dois programas para tratamento dos pacientes. O primeiro foi o SmileCloud, que ajuda muito no processo diagnóstico dentário e é muito fácil de utilizar. E o segundo é o Medit Link, que tem vários aplicativos de diagnóstico e produção. Esses aplicativos foram a minha porta de entrada na IA”, complementa.

inteligência artificial - Lincoln Queirós
Lincoln Queirós (à direita) trabalha há 17 anos com Odontologia Digital. (Imagem: arquivo pessoal)

 

O cirurgião-dentista Rafael Gama, de Cícero Dantas (BA), é um exemplo de profissional que utilizou sua experiência com o digital para incorporar a inteligência artificial na atuação. Trabalhando em uma cidade pequena, ele buscou especialização em Implantodontia e Ortodontia para abranger áreas relevantes. “Eu via a necessidade de ter um conhecimento de tudo em uma cidade do interior. Afinal, era difícil encontrar um profissional de confiança para trabalhar. E isso, anos depois, foi muito importante para a minha jornada na Odontologia Digital”, explica.

Antes de iniciar o mestrado em Odontologia Digital, Rafael Gama estudou sozinho, debruçou-se sobre ferramentas digitais específicas e buscou aprendizados até fora da Odontologia, principalmente sobre impressão 3D. Formado e com um escâner intraoral em mãos, começou a desenvolver seus projetos e, com o tempo, foi chamado para ministrar palestras.

A inteligência artificial também abriu espaço para o empreendedorismo. Fundador do Hospital Odontológico Implar, uma das mais modernas estruturas da Odontologia brasileira, e há 15 anos realizando atendimentos na cidade de Poços de Caldas (MG), o cirurgião-dentista Sérgio Cândido Dias também não fez nenhum curso específico para utilizar a tecnologia. No entanto, cercou-se de especialistas no tema para desenvolver o lançamento do CIA (Consultório com Inteligência Artificial), implementado em 2018.

“Para a realização desse projeto, eu contei com o envolvimento direto da Dra. Gisseli Ávila (esposa e sócia de Dias no Implar), que também tem grande afinidade por tecnologias, além da colaboração de vários engenheiros. Assim, construímos um consultório inteligente que nos entrega tudo que precisamos em termos de informações completas sobre cada paciente na hora que solicitamos, o que muda nossa capacidade de tomada de decisão”, explica Dias, que é mestre e doutor em Reabilitação Oral.

O IMPACTO DA IA NA ROTINA CLÍNICA

A inteligência artificial está mudando a rotina odontológica em diversas frentes, desde os agendamentos, com atuação no gerenciamento de consultas de forma eficiente, considerando a disponibilidade dos pacientes e do cirurgião-dentista, o que reduz o tempo ocioso. Além disso, ela também atua como um assistente virtual e pode oferecer assistência ao cliente, apresentando um suporte no diagnóstico e planejamento dos tratamentos, mesmo que de forma inicial.

Os profissionais que já aplicam a inteligência artificial no dia a dia relatam grandes avanços no atendimento clínico. Em especial, na economia de tempo. “Antes da pandemia, nós produzíamos placas oclusais que demoravam entre 15 e 20 dias para serem entregues. Hoje conseguimos fazer o mesmo fluxo com o auxílio da IA em 40 minutos. Temos máquinas de impressão 3D que são capazes de entregar nove elementos em oito minutos. Um escaneamento, que antes durava entre dez e 15 minutos, agora dura no máximo um minuto, e com mais qualidade”, relata Lincoln Queirós.

Outro ponto destacado pelos especialistas é a assertividade nos processos. Além disso, a curva de aprendizado traz vantagens que passam a fazer parte da rotina. “Eu passei por duas realidades diferentes, como cirurgião-dentista analógico e digital. Nós sabemos que todo conhecimento da graduação não se perde e que a parte clínica é essencial. Isso continua, nós só estamos mudando os métodos e a forma de trabalhar. E eu digo que isso mudou 100%. Se eu tiver que voltar a trabalhar como antes, sem a tecnologia, eu vou deitar e chorar”, brinca Rafael Gama.

Rafael Gama ministra cursos sobre fluxo digital e cirurgia guiada. (Imagem: arquivo pessoal)

 

Esses progressos seguem em desenvolvimento constante e devem ampliar cada vez mais o leque de benefícios da IA. Sérgio Dias revela que o Implar está planejando novos passos com a tecnologia. “Estamos dando início a testes com ferramentas para controle de estoques e também para a personalização dos tratamentos, com a possibilidade de compilar dados do paciente de uma forma mais organizada para tomada de decisões. Acredito que a Teleodontologia vai se desenvolver muito com as novas ferramentas de IA que vêm por aí”, idealiza.

EVOLUÇÃO EXIGE EDUCAÇÃO

Com a popularização do uso da inteligência artificial, diversas áreas de atuação profissional já investem na produção de cursos introdutórios e aprofundados sobre a tecnologia. A Odontologia também passa por esse processo e, especialmente nas disciplinas de Odontologia Digital, desde a graduação até o mestrado, já é possível encontrar os caminhos educacionais para a especialização.

Lincoln Queirós destaca que os cursos são necessários, especialmente por fazerem uma conexão entre a Odontologia clínica e as soluções digitais. No entanto, ele prevê uma mudança no foco do aprendizado. “Eu acredito que os cursos sobre Odontologia Digital vão começar a mudar. No princípio, acreditava-se que o cirurgião-dentista precisaria entender de programação. A partir de agora, os cursos mostrarão como aplicar as soluções digitais na sua rotina clínica. E, principalmente, como customizar essas soluções para a sua realidade”, pontua.

Por outro lado, Rafael Gama enfatiza que aprender sobre o funcionamento da tecnologia pode ser essencial para os profissionais ganharem independência em sua rotina clínica. “Em qualquer aula que eu ministro, me sinto obrigado a colocar o mínimo da base de funcionamento. Não adianta um profissional realizar o escaneamento intraoral de um paciente e usar a IA sem saber como ela funciona. Afinal, tudo na tecnologia é passível de erro. E nós, seres humanos, também. Para minimizar isso, precisamos entender o funcionamento de um software, com algoritmos, renderização, coordenadas geográficas e eixo. Nós precisamos ter esse ponto de vista da construção”, opina.

Rafael Gama concorda com a necessidade de ampliar as oportunidades de conhecimento. O especialista aponta um espaço vazio entre o que as empresas do segmento oferecem e o quanto os estudantes, em especial, estão preparados. “Hoje a Odontologia Digital está visivelmente melhor, mas desde a minha formação eu sinto o interesse dos profissionais ingressarem neste mercado, e as empresas tendo muitos equipamentos para ofertar. Mas, muitas vezes, os conteúdos ainda não estão organizados de forma a deixar o aprendizado mais fluido”, explica.

Para Lincoln Queirós, a inteligência artificial vai levar aos consultórios algo que já é visto em nosso cotidiano. “Eu costumo fazer uma brincadeira em meus cursos. Peço para os alunos que têm iPhone levantarem seus aparelhos. Se houver 100 celulares, todos serão iguais, mas com customizações diferentes, de acordo com seu proprietário. E é isso que a IA vai trazer para a Odontologia: soluções totalmente customizadas para a realidade clínica de cada profissional”, exemplifica.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA REABILITAÇÃO ORAL

Existe um consenso de que, atualmente, a etapa diagnóstica é a mais impactada pela IA. Isso é facilmente explicado pelo avanço no processamento de imagens, com atuação da IA na análise de imagens radiográficas, tomográficas e de câmeras intraorais, e com capacidade para processar grandes conjuntos de dados clínicos, incluindo histórico, registros de tratamento e resultados de exames.

Na Reabilitação Oral, muitas rotinas têm sido adaptadas e melhoradas através da tecnologia. De acordo com Lincoln Queirós, uma série de ações já é possível. “Hoje nós temos aplicativos de análise de oclusão que utilizam IA e já nos dão diagnósticos precisos das áreas críticas e a serem observadas. Na parte de simulação estética, já existem boas opções. Ainda esperamos algo mais na parte funcional, de uma análise oclusal mais elaborada para casos de reabilitações mais extensas. Além disso, há softwares que trabalham na identificação de margens, segmentação e extração de bibliotecas de dentes naturais”, lista.

No entanto, Rafael Gama acredita que todas as áreas da Odontologia utilizarão a IA em um futuro próximo. “Em minhas aulas, eu coloco subtópicos com praticamente todas as especialidades sendo enquadradas no digital. Essas melhorias vêm somar, acrescentar e abrilhantar o que vivemos na Odontologia, seja na Prótese Dentária, na Implantodontia, na Endodontia ou até na Harmonização Orofacial, como a utilização do escâner de face, capaz de calcular volumização para aplicações. Ainda é preciso refinar, mas o tempo vai nos entregar isso”, garante o professor, que ministra cursos de fluxo digital e cirurgias guiadas, passando por 17 estados brasileiros e Portugal.

Sérgio Dias vai além, amplificando a importância deste recurso para os cirurgiões-dentistas no futuro. “A inteligência artificial estará presente não só em todas as áreas da Odontologia, mas também na maioria das etapas de cada tratamento em todas as especialidades”, prevê.

Gisseli Ávila, que é especialista em Implantodontia e Prótese Dentária, além de ser sócia de Sérgio Dias no Implar, projeta a interligação entre todas as tecnologias mais avançadas. “Nos próximos anos, a IA estará totalmente imersa no conceito da Reabilitação Oral, do início ao fim do tratamento, bem como estará presente antes e depois do tratamento. A IA vai se conectar com o metaverso, com a robótica, com a cirurgia navegada e com o CAD/CAM”, complementa.

O Implar lançou seu consultório com inteligência artifi cial há cinco anos. (Imagem: divulgação)

 

O FUTURO DA IA: MÁQUINAS E HUMANOS JUNTOS

Na contramão das profissões que podem ser automatizadas pelo avanço da inteligência artificial, a Odontologia deve ganhar cada vez mais uma aliada para a excelência clínica. A união entre a assertividade mecânica e a sensibilidade humana deve elevar a qualidade dos atendimentos odontológicos. Desta forma, o cirurgiãodentista seguirá como peça indispensável neste cuidado oral. “Na velocidade atual, é possível imaginar que nos próximos anos os softwares entreguem projetos prontos. Mas nós, cirurgiões-dentistas, vamos precisar validar tudo porque existem variações clínicas, além da alimentação dos softwares com novas atualizações, o que exige conhecimento clínico e prático do cirurgião-dentista. Assim, o ser humano seguirá importantíssimo nesse processo”, opina Rafael Gama.

Uma das questões mais complexas para o algoritmo está na relação profissional-paciente, que dificilmente será substituída. “A inteligência artificial vai oferecer probabilidades matemáticas de sucesso, mas não vai conseguir contornar questões quanto ao desejo do paciente, na individualidade e na tomada de decisão. Ele vai exercer seu direito de escolha e ouvir a opinião profissional daquele cirurgião-dentista que vai atendê-lo. Desta forma, vai levar um pouco mais de tempo para que a IA consiga fazer essa leitura tão subjetiva de sentimentos e expectativas”, opina Lincoln Queirós.

No entanto, o especialista observa que em breve algumas abordagens serão exclusivamente feitas através das máquinas, o que pode trazer um ganho real para a rotina clínica. “Eu acredito que, em um futuro muito próximo, a IA vai conduzir partes de tratamentos mecânicos, que levam tempo e exigem do profissional um grau de tensão para que ele não erre, e isso vai nos liberar daquela parte chata, repetitiva e maçante da nossa profissão. Assim, o cirurgião-dentista vai poder focar no que realmente faz a diferente: preparar, cimentar, diagnosticar, ajustar e dar uma melhor experiência ao seu paciente, tendo a mente clara, limpa e descansada para a tomada de decisões críticas”, acredita Queirós.

De acordo com os cirurgiões-dentistas, a tendência é que inteligência artificial e seres humanos cheguem a um ponto em que a tecnologia facilita e otimiza a atuação clínica, mas sem inviabilizar a participação dos cirurgiõesdentistas no processo. “A IA é bem-vinda e esperamos que ela cresça muito mais. No entanto, ela é uma ferramenta que precisa de profissionais capacitados para darem o aval e garantirem a qualidade. Isso não pode mudar”, acrescenta Rafael Gama.

Com um longo caminho a ser percorrido até o ponto ideal entre humano e máquina, é possível vislumbrar uma mudança impactante na atuação profissional de cirurgiões-dentistas, TPDs e demais envolvidos no atendimento odontológico. “Essa nova rotina vai transformar a Odontologia, que deixará de ser uma profissão culturalmente dolorida, chata, repetitiva e imprecisa para se tornar uma profissão tecnológica e encantadora, com soluções rápidas para as demandas de pacientes, e até com uma admiração por parte dos pacientes e de outras áreas da saúde, especialmente pela evolução em trabalhos de próteses, reabilitações e tratamento estéticos”, finaliza Lincoln Queirós.

Inteligência artificial no IN24

O IN24, maior congresso de Reabilitação Oral da América Latina, vai debater profundamente a utilização das novas tecnologias e ferramentas mais importantes na prática da Odontologia Digital, incluindo a inteligência artificial.

No Digital Labs, um novo formato de atividade que estreia nesta edição do evento, renomados speakers nacionais e internacionais vão protagonizar apresentações ao vivo, compartilhando o passo a passo de seus fluxos com o público. Assim, será possível acompanhar como os profissionais mais experientes conduzem seus casos, avaliando dificuldades, contornando intercorrências e mostrando caminhos para o melhor desempenho profissional.

O IN24 acontece entre os dias 24 e 27 de setembro no Distrito Anhembi, em São Paulo. Acesse o site e confira todos os detalhes da programação: www.in24.com.br