Fábio Bezerra destaca que a inteligência artificial pode ser utilizado clinicamente, mas deve ser avaliada como qualquer outra ferramenta da área da Saúde.
Não há dúvidas de que a inteligência artificial (IA) é um dos tópicos mais relevantes da atualidade, especialmente com os avanços recentes no processamento de linguagem natural, decorrente do sucesso e da popularidade de modelos de linguagem como o ChatGPT. Este robô conversacional transformador pré-treinado (GPT: Generative pre-training transformer) é capaz de realizar tarefas complexas a partir de um grande número de informações confiáveis, que amplia de maneira inovadora a capacidade de solução de problemas envolvendo megadados, com impactos importantes para a saúde humana e ambiental, incluindo as diferentes áreas de educação, diagnóstico, plano de tratamento, terapias reabilitadoras e programas de prevenção em Odontologia.
A história da IA é marcada por uma tensão entre modelos baseados nos conhecimentos prévios do ser humano e em modelos agnósticos que aprendem relações e informações por meio de buscas profundas nos megadados, aproveitando o poder da computação que vem aumentando exponencialmente nos últimos 70 anos. No xadrez, por exemplo, os primeiros motores tentavam se basear nas estratégias humanas para compreender a estrutura do jogo. Entretanto, o Deep Blue, o robô construído pela IBM que derrotou Garry Kasparov em 1997, alcançou seu sucesso ao avaliar centenas de milhões de posições antes de tomar uma decisão. Este método de força bruta foi criticado por pesquisadores. No entanto, nos últimos 25 anos, os métodos estatísticos têm prevalecido em várias áreas, incluindo modelos generativos como o ChatGPT, que geram dados com base em informações prévias.
Devemos compreender, então, que os modelos de IA não aprendem nem pensam da mesma forma que os seres humanos. Eles operam com base em algoritmos e padrões identificados nos dados, o que lhes permite criar conexões que podem não ser intuitivas do ponto de vista científico humano, mas, ainda assim, essas conexões podem ser valiosas e fornecer insights úteis. A capacidade dos modelos de IA de identificar padrões complexos e fazer inferências a partir de grandes conjuntos de dados é uma das razões pelas quais os modelos são tão poderosos em várias aplicações.
Entrando nessa nova era tecnológica, existem grandes oportunidades na área de Saúde para usufruir dos benefícios oferecidos pela IA. No entanto, ao mesmo tempo, existem grandes desafios a serem superados em qualquer aplicação voltada para o paciente, como garantir a confiabilidade e a atualidade das informações, proteger a privacidade do paciente e aprimorar a qualidade dos dados de treinamento. O uso de modelos de inteligência artificial pode ser dividido em três fases, que veremos a seguir.
ASSISTENTES DIGITAIS
A primeira fase é a criação de assistentes digitais. Essa é a etapa onde o estado da inteligência artificial atual pode ter o maior impacto: o objetivo é reduzir a quantidade de trabalho não intelectual realizado pelos profissionais treinados. Por exemplo, as tecnologias de autopreenchimento e de busca de informações cada vez mais especializadas e refinadas facilitam o dia a dia de quem tem que preencher relatórios após as consultas com pacientes ou de quem tem que buscar artigos científicos para se manter atualizado com o estado da arte em seu campo.
Essas tecnologias também podem reduzir significativamente as latências em tarefas relacionadas a imagens. Modelos de segmentação confiáveis podem diminuir o trabalho de avaliação de imagens, como a análise de radiografias, tomografias ou ultrassonografias, rotineiramente utilizadas em planejamentos virtuais para a realização de cirurgias guiadas em Implantodontia, ou planejamentos que incluem bases de dados e softwares de planejamento como a Ortodontia utilizando alinhadores.
MODELOS DE DIAGNÓSTICO
A segunda fase é o diagnóstico médico. Nesta etapa, com base em informações demográficas do paciente, resultados de imagens e histórico médico, o modelo de IA pode sugerir diagnósticos com alta precisão. Existe aqui uma grande oportunidade, pois a Medicina e a Odontologia atuais caminham na direção do cuidado personalizado do paciente.
Essas relações estatísticas são facilmente quantificadas cientificamente, mas aplicar esse conhecimento no dia a dia com o paciente é difícil. É aí que entram os modelos de diagnósticos, que idealmente seriam treinados com dados de alta qualidade e variedade, sendo testados clinicamente como qualquer outro produto ou método clínico para verificar sua utilidade, praticidade e benefício ao paciente, sendo uma das aplicações em Odontologia a predição de diagnósticos de alterações ósseas ou de tecidos moles a partir de um grande volume de imagens padronizadas.
MODELOS DE DECISÃO E TRATAMENTO
A última fase, à qual ainda não chegamos, é o modelo que utiliza o diagnóstico e as informações do paciente para propor um plano de tratamento odontológico reabilitador. Nessa etapa, torna-se crucial reduzir o viés nos dados de treinamento para os modelos de inteligência artificial, pois o sistema de decisões precisa ser treinado com base em decisões odontológicas anteriores. Por isso, é fundamental analisar cuidadosamente os dados em busca de quaisquer vieses técnicos, científicos ou demográficos, assegurando que o cuidado ao paciente seja equitativo e justo.
Com todas essas tecnologias, devemos sempre lembrar que a métrica de qualidade mais importante e relevante na área odontológica é o impacto no usuário, seja ele o paciente ou o cirurgião-dentista. Todo modelo de IA que possa ser utilizado clinicamente deve ser avaliado como qualquer outra ferramenta da área da Saúde. Portanto, nesta década em que os modelos de aprendizado de máquina estão fazendo sucesso mundial, a responsabilidade dos profissionais de saúde é garantir não apenas a eficácia técnica, mas também a segurança e o benefício real para aqueles que utilizam essas inovações no campo odontológico.
Fábio Bezerra
Especialista em Periodontia – FOB/USP; Especialista em Implantodontia – Inepo; Mestre em Periodontia – Universidade Paulista; Doutor em Biotecnologia – Unesp.
Orcid: 0000-0003-0330-2701.
Autor convidado:
Lucas Bezerra
Mestre em Física e em Engenharia Biomédica – University of British Columbia; Desenvolvedor de modelos de inteligência artificial para área Biomédica.
Orcid: 0009 0000 4963 7481.