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Atendimento odontológico em casos de porfirias hepáticas

Eduardo Dias de Andrade traz informações importantes para o tratamento odontológico em pacientes com porfirias hepáticas.

As porfirias constituem um grupo de doenças genéticas, além de formas adquiridas, que, apesar de raras, são de potencial interesse para a clínica odontológica. São deficiências enzimáticas específicas na via de biossíntese do radical heme da hemoglobina, causando o acúmulo de porfirinas, compostos intermediários que se tornam tóxicos quando detectados em altas concentrações nos tecidos1.

Para entender o que ocorre nas porfirias, a síntese do radical heme passa por várias etapas, das quais participam diferentes enzimas. Se faltar uma destas enzimas na sequência de produção, haverá o acúmulo de porfirinas. São de difícil diagnóstico, pois cada enzima afetada nesta “cascata” leva a um padrão diferente de alterações, de menor ou maior gravidade2.

Dentre elas, talvez a de maior interesse para a clínica odontológica seja a porfiria aguda intermitente (PAI), uma rara desordem metabólica autossômica dominante, que resulta da deficiência da enzima hidroximetilbilano sintase. A doença é latente em toda a vida adulta de aproximadamente 90% dos indivíduos que possuem este defeito genético3-4.

Em condições normais, a deficiência desta enzima não é suficiente para gerar os ataques agudos. Alguns fatores exógenos podem converter a doença latente em doença manifesta, como a desidratação, o jejum, as infecções e o uso de medicamentos que induzem as enzimas porfirogênicas. Geralmente, as crises da doença ocorrem após a puberdade e são mais frequentes em mulheres, quando flutuações hormonais podem desencadear os ataques, como a que ocorre na menstruação ou pelo uso de contraceptivos orais4.

Os portadores apresentam dor abdominal (em quase 100% dos casos), taquicardia, urina escura, náuseas, vômitos, constipação e manifestações neurológicas, como ansiedade, histeria, depressão, fobia e convulsões, entre outros. Também podem ocorrer sudorese, tremores e febre. A pressão arterial pode estar aumentada ou diminuída4. O tratamento das crises agudas deve ser conduzido em ambiente hospitalar.

A prevenção dos ataques agudos das porfirias deve ser a maior preocupação do cirurgião-dentista durante o atendimento. Neste sentido, são propostos alguns cuidados e recomendações5-6.

Na anamnese direcionada, é necessário investigar:

• Qual médico é o principal responsável por tratar a doença?
• Qual a frequência de ocorrência dos ataques agudos?
• Quando se deu a última crise?
• Quais fatores podem ter precipitado a crise?
• Quais manifestações, se existirem, podem ajudar a prever um ataque?
• Quais foram os cuidados médicos por ocasião das crises?

Os principais objetivos do tratamento dentário devem ser o controle da dor e das infecções, bem como a manutenção da função mastigatória. Oriente o paciente a evitar o jejum antes das sessões de atendimento, pois a restrição calórica poderá desencadear um ataque agudo. Também evite agendar consultas das pacientes que se encontram na fase de menstruação.

Planejamento

Antes de se programar qualquer procedimento, o contato com o médico é imprescindível. Você deverá informá-lo sobre o plano de tratamento odontológico proposto, incluindo os fármacos que pretende empregar. Se ele tiver dúvida sobre a segurança de determinado anestésico ou medicamento, apresente-lhe e discuta as possíveis alternativas. A Associação Brasileira de Porfiria (Abrapo), em seu site, traz uma lista dos anestésicos e medicamentos considerados de uso seguro, uso não seguro e uso duvidoso para pacientes portadores da doença7.

Anestesia local

Os sais anestésicos locais são potencialmente porfirogênicos, por seu metabolismo estar relacionado com o sistema metabólico de citocromos hepáticos. Na prática, a maioria dos pacientes com porfiria hepática pode ser anestesiada com relativa segurança, se forem tomadas algumas precauções8.

A bupivacaína, prilocaína e a lidocaína são consideradas anestésicos seguros, e o mesmo pode se dizer da mistura eutética de lidocaína e prilocaína para uso tópico (EMLA). Apesar de faltarem dados na literatura, a articaína também pode ser considerada segura, pelo fato de sua metabolização ser iniciada no próprio plasma sanguíneo (90%), antes da passagem pelo fígado. Quanto à mepivacaína, seu uso é algo controverso, pois sua metabolização hepática se dá de forma mais lenta que a dos demais anestésicos9.

Há quem diga que o metabissulfito de sódio, um aditivo que impede a oxidação do vasoconstritor contido nas soluções anestésicas locais com epinefrina, pode provocar um ataque agudo de porfiria1,5. Entretanto, com base na lista atualizada da Abrapo, as soluções anestésicas com epinefrina provavelmente não são porfirogênicas7.

Sedação

Quando a sedação mínima via oral for considerada, dê preferência para o midazolam, alprazolam ou lorazepam. Da mesma forma, o uso da mistura de óxido nitroso e oxigênio pela via respiratória é considerado seguro para esta finalidade7.

Controle da dor

Ainda há certas controvérsias quanto ao uso de analgésicos e anti-inflamatórios em pacientes portadores de porfiria. A aspirina e o paracetamol são classificados como analgésicos seguros, ao contrário da dipirona, que é proibida com base nas orientações da Abrapo7. Quanto aos anti-inflamatórios, é recomendado o uso dos corticosteroides (dexametasona ou betametasona) e de alguns Aines, como o ibuprofeno ou cetoprofeno. Há restrições quanto ao emprego do diclofenaco, cetorolaco e nimesulida.

Profilaxia e tratamento das infecções

As penicilinas são as drogas de escolha para uso em pacientes com porfiria. Aos pacientes alérgicos a este grupo de antibióticos, deve-se prescrever azitromicina ou doxiciclina. O metronidazol exige uma avaliação cuidadosa do risco/benefício de seu emprego. A eritromicina é contraindicada de forma absoluta7.

Bochechos com solução aquosa de digluconato de clorexidina podem ser empregados para o controle do índice de placa.

O tratamento de infecções fúngicas bucais, por sua vez, exige maior atenção, pois os antifúngicos comumente empregados na clínica odontológica (cetoconazol, fluconazol e itraconazol) são classificados como de uso duvidoso7.

Referências

1. Greenwood M, Meechan JG. General medicine and surgery for dental practitioners. Part 2 – metabolic disorders. Br Dent J 2010;208(9):389-92.
2. Kauppinen R. Porphyrias. Lancet 2005;365:241-52.
3. Brown RS, Hays GL, Jeansonne MJ, Lusk SS. The management of a dental abscess in a patient with acute intermittent porphyria. A case report. Oral Surg Oral Med Oral Pathol 1992;73(5):575-8.
4. Lip GY, McColl KE, Moore MR. The acute porphyrias. Br J Clin Pract 1993;47(1):38-43.
5. Brown GJ, Welbury RR. The management of porphyria in dental practice. Br Dent J 2002;193(3):145-6.
6. Moore AW III, Coke JM. Acute porphyric disorders. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2000;90(3):257-62.
7. Associação Brasileira de Porfiria (Abrapo). Disponível em: <http:// www.porfiria.org.br/medicamentos>. Acesso em: 11-11-2020.
8. Daza PL, Cruz MTE, Rodríguez MV, Pérez RV. Porfirias: consideraciones anestésicas. An Med (Mex) 2007;52(3):130-42.
9. Andrade ED. Terapêutica medicamentosa em odontologia. São Paulo: Artes Médicas 2014. p.214-8.