You are currently viewing Um abismo criado pelo digital nos laboratórios de prótese

Um abismo criado pelo digital nos laboratórios de prótese

David Morita destaca que os profissionais da Odontologiam fazem parte da “Era da transição” e, por isso, todos dentro do laboratório precisam se unir para transpor esta fase de adaptação.

Começo meu texto abordando o abismo criado pelo digital nos laboratórios de prótese, e ciente de que pode ser impactante e deixar muitas pessoas descontentes com o título desta coluna. Porém, convido você a continuar a leitura para entender minha colocação e, quem sabe, ao final da leitura, você também compartilhe da mesma opinião que eu tenho atualmente sobre o título acima.

Para que eu consiga me fazer entender, preciso voltar no tempo e relatar minha própria experiência como técnico em prótese dentária. Quando eu estava começando na área de prótese, tinha um sonho de me tornar um grande ceramista. E a primeira pergunta que fiz ao meu pai e aos meus irmãos sobre isso foi: “o que eu preciso fazer para ser um ceramista reconhecido no mercado de trabalho?”. Todos foram unânimes em suas respostas: “você precisa ter uma anatomia perfeita”.

Entendi perfeitamente o que eles queriam dizer. Eu precisaria conhecer todos os conceitos sobre anatomia dental e, para isso, estudar morfologia e treinar muito, muito mesmo. Lembro-me que, ao entrar no Senac para fazer o curso de prótese, o primeiro módulo era anatomia com a técnica de escultura regressiva. Como meu pai percebeu que eu estava indo bem, me presenteou com um livro do professor Peter Thomas. Um livro incrível, porém, todo em inglês. Confesso que eu “lia” somente as figuras do livro, pois não dominava nada do idioma inglês. Mas contribuiu muito para o meu aprendizado em anatomia e escultura regressiva.

Passado um tempo, eu perguntei para o meu querido professor Luiz Roberto dos Reis o que eu precisava fazer para ser um grande ceramista. E ele me respondeu: “precisa saber muito sobre anatomia, estética e função”. E me presenteou com um livro chamado “Atlas da Metalocerâmica”, escrito pelo professor Massariro Kuwata, que me ajudou muito para que eu pudesse trilhar o meu sonho de ser um ceramista. Com isso, durante muito tempo, me dediquei à escultura dental utilizando modelos de gesso, lamparina, cera e instrumento de corte para treinamento constante, para o aprimoramento dos conhecimentos necessários para dominar a anatomia dental.

Durante esta fase de aprendizado, eu contava com a ajuda do meu irmão Daniel, que já fazia cerâmica, para me ajudar e orientar como extrair o melhor do exercício que eu praticava. E isso só era possível porque ele também fez uso desta trajetória para se tornar um ceramista. Como já tinha passado por esta curva de aprendizado, ele dominava muito bem os processos de enceramento e sabia como me ajudar nesta tarefa. Assim, eu segui até conhecer tudo sobre anatomia dental. Tudo isso significa que, na ocasião, a pessoa que me orientava já tinha passado pelo mesmo caminho que eu estava passando. Ou seja, já sabia o que eu precisava saber para continuar a aprender e, um dia, me tornar um ceramista.

E hoje? Será que é do mesmo jeito? Acredito que não. Fazendo uma análise crítica do cenário atual, tenho uma perspectiva completamente contrária ao que eu vivenciei no passado. Isso porque muitos donos de laboratório têm contratado pessoas sem um entendimento real sobre anatomia, estética e função. Estão contratando pessoas que entendem de CAD e nem se preocupam se conhecem realmente os conceitos básicos para a elaboração correta de uma prótese dentária. Basta ter autonomia do uso de um computador e um software de desenho dental, e já estão contratadas no laboratório. Mas será que isso já é o suficiente? Para mim, saber usar um software é o mesmo que dominar um gotejador, a cera e o instrumental. Saber dominar as ferramentas não significa dominar os conceitos de anatomia, função e estética. Pelo contrario, são questões completamente distintas sobre o ponto de vista de desempenho laboratorial.

E é exatamente neste ponto que se inicia o abismo que coloquei como título deste texto. Hoje percebo que a pessoa que esculpe digitalmente tem pouco conhecimento no que diz respeito à anatomia, função e estética. Mas ela está lá tentando oferecer o seu melhor. Por outro lado, no mesmo ambiente de trabalho, temos o ceramista experiente que sabe muito bem o que precisa para finalizar um trabalho altamente estético. Mas, o ceramista de agora não é mais o ceramista de antigamente. Ele não sabe como demonstrar o que precisa ser feito para ter um trabalho mais refinado e melhor. Isso porque hoje ele tem pouca intimidade com softwares e, caso tente realizar um desenho digital, terá mais dificuldade em comparação ao técnico que desenha. Assim, ele se sentirá “rendido”. O abismo está aí. O ceramista experiente não consegue demonstrar como deve ser feito o trabalho porque não sabe usar as ferramentas atuais dos laboratórios dentais (softwares), muito diferentes do que tínhamos antes quando o fluxo era analógico.

Como podemos preencher este abismo? Informação e conhecimento serão os pontos de partida para a resolução de qualquer problema. Acredito na ideia de que todos que hoje têm a responsabilidade de esculpir as peças de maneira digital tenham cada vez mais conhecimento de anatomia, função e estética, utilizando os conceitos que já existem na literatura e colocando-os em prática. Eu entendo que os programas disponíveis já possuem uma biblioteca de diversas anatomias, mas isso não significa que entregam próteses. Eles facilitam o trabalho técnico, mas não são capazes de fazer o que a Odontologia preconiza, tampouco a vivência e experiência que um bom ceramista precisa para entregar um trabalho altamente estético e funcional.

Estamos na fase mais crítica desta etapa da Odontologia. Fazemos parte da “Era da transição”. Por isso, todos dentro do laboratório precisam se unir para transpor esta fase de adaptação. Peço paciência para todos os ceramistas que enfrentam esta dura batalha de adaptação. E que também aceitem que não sabem como demonstrar como dever ser feito no CAD porque também não dominam a ferramenta digital. Peço também que todos que estão no CAD busquem conhecimento em anatomia, estética e função para não se tornarem reféns dos limites impostos pelos sistemas digitais. A união entre todos do laboratório será capaz de preencher este abismo que nós mesmos criamos.