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Oclusão é biologia, prótese é precisão. Ser digital ou analógico é opção

O uso de instrumentos e técnicas digitais sofisticadas é atraente, mas a área da saúde necessita de muito cuidado.

O estudo da oclusão começou na área de Prótese Total, quando as técnicas para montagem dos dentes artificiais eram baseadas na observação de crânios, na tentativa de reproduzir o arranjo dental “natural”. Portanto, a importância do posicionamento era a “reprodução” do que se encontrava na boca.

Com outra perspectiva, em relação a dores e problemas articulares, a preocupação com a correlação deste arranjo e o posicionamento articular se tornaram importantes em 1934, quando o otorrinolaringologista James Costen hipotetizou que alguns sintomas otológicos eram causados pelo posicionamento inadequado dos côndilos dentro da cavidade glenoide, decorrentes da falta de dentes e/ou perda da dimensão vertical de oclusão, levando à “pressão” e gerando desconforto de estruturas nobres, como o nervo auriculotemporal.

Estas considerações meramente hipotéticas criaram um estímulo para que novos pacientes fossem aos consultórios de cirurgiões-dentistas na época para realizar reabilitações, objetivando o tratamento de sintomas relacionados a dores na face. No entanto, como os resultados não foram os esperados, os profissionais começaram a culpar o insucesso, acusando erros na captura da perfeição morfológica da oclusão, como registros inadequados da relação cêntrica e do posicionamento das cúspides dentro das fossas, entre outras, reforçando a busca pela oclusão ideal e iniciando assim a chamada Escola Gnatológica, em 1926, por McCollum e colaboradores. A busca pela “oclusão ideal” também objetivava, na época, o tratamento do bruxismo e correlacionava diretamente a longevidade dos trabalhos protéticos a esse cenário de perfeição anátomo-funcional.

Para fechar estas lacunas em busca de respostas para o que se achava correto, surgiram dispositivos como os articuladores totalmente ajustáveis, técnicas “matemáticas”, como o enceramento oclusal das cúspides em tripodismo, referências “espaciais”, como a esfera do Monson e o triângulo de Bonwill, dentre outras estratégias “mecânicas”. Esse conjunto de técnicas e aparatos se tornou presente em escolas e universidades de todo o mundo, sendo preconizadas, ensinadas e aplicadas na maioria das vezes sem investigação científica prévia, levando ao desenvolvimento da Gnatologia suportada em bases científicas escassas, fracas e limitadas, como a maioria dos achados científicos dessa época. Isso resultou em reabilitações extensas e muitas vezes destrutivas, sem a esperada resolução dos sintomas. Os tempos mudaram, a validação científica se tornou mais exigente e esta oclusão “matemática” tem sido substituída por conceitos de base biológica com implicações psicossociais, funcionais e estéticas, individualizada para cada paciente. Assim, observamos a cada dia que a oclusão é mais biológica do que matemática1.

Com o advento de exames de imagem mais precisos, organização dos dados obtidos em uma velocidade cada vez mais rápida pela internet e a evolução da metodologia científica, há uma percepção diferente de como é a relação da oclusão com as diversas áreas da Odontologia. Usando a relação cêntrica como exemplo, hoje temos estudos mostrando a variação circadiana desta até então “imutável” posição articular e, como consequência, a variação dos contatos oclusais2. Além disso, há os reflexos dos crescentes problemas relacionados ao bruxismo em vigília3.

Outro impacto, este do ponto de vista comercial e educativo, é a adaptação da indústria de articuladores, produzindo instrumentos mais simples com distância intercondilar, ângulo de Bennett e guia condilar fixos, sem implicações nos resultados finais dos nossos trabalhos protéticos e que também nos ajudam a entender posicionamentos e conclusões como a de Saratti et al4, que menciona: “Os fundamentos da Gnatologia foram concebidos para resolver dificuldades técnicas, mas foram então considerados estereótipos fisiológicos”.

No artigo, os autores ainda citam que este equívoco levou a uma promoção, durante décadas, de teorias mecanicistas para descrever a função oral, mas as evidências disponíveis hoje apoiam uma abordagem mais flexível e adaptável. Sendo assim, os argumentos gnatológicos foram relegados para se tornarem de relevância exclusivamente técnica na reabilitação oral.

No caso da prótese dentária e da reabilitação oral, a oclusão foi idealizada principalmente por protesistas, que necessitavam da precisão para seus procedimentos no intuito de resolver os problemas a ela relacionados. Entretanto, a tentativa de “curar” patologias articulares e musculares relacionadas a alterações da mastigação se mostrou um equívoco, gerando questionamentos que perduram até hoje. Por isso, é importante salientar, de acordo com os dados e informações que temos atualmente, que prótese dentária é sobre precisão, e oclusão é sobre biologia.

Outra evolução que criou uma revolução de conceitos foi a implementação de processos digitais, tanto em nível clínico quanto em nível laboratorial. Sabemos, há alguns anos, que a digitalização da Odontologia é um processo sem volta, com inúmeros benefícios e facilidades ao profissional. No entanto, o que temos visto é que mesmo parecendo “evolução”, há técnicas que podem trazer de volta estes conceitos já deixados para trás pela ciência.

As tecnologias de imagem da articulação temporomandibular (ATM), associadas com digitalização intraoral e facial, têm evoluído rapidamente, facilitando a visualização de aspectos anatômicos importantes, como a trajetória condilar e o eixo da dobradiça, associando a análise do plano oclusal, possibilitando uma precisão ainda maior dos antigos articuladores totalmente ajustáveis. Porém, temos que considerar a seguinte reflexão: estes dados e informações não foram usados exaustivamente no passado e, posteriormente, abandonados pelo avanço do conhecimento científico?

Sem dúvida, transferir esta “perfeição” para os sistemas digitais facilitará tecnicamente nossos processos reabilitadores, mas a ciência atual não nos permite extrapolar estes achados para o diagnóstico de dores e outros sintomas orofaciais. Isto pode levar à “criação” de novos pacientes diagnosticados e com tratamentos baseados em imagens e em uma coletânea de informações digitais. Se assim for, corremos o risco de tratar pacientes saudáveis sem nenhuma necessidade de tratamento ou intervenção. O sobretratamento é sempre um alerta em qualquer área médica, e na Odontologia não é diferente.

O uso de instrumentos e técnicas digitais sofisticadas é extremamente atraente e sedutor para os cirurgiões-dentistas, laboratórios de prótese, clínicas radiológicas e pacientes. Mas, na área da saúde é preciso ter muito cuidado5. Hoje, temos dados e muito mais informações, mas não podemos esquecer que o cuidado primário de toda a área da saúde é não causar dano ao indivíduo, além de entender que erramos muito no passado por limitação do momento e da Ciência, que engatinhava. No entanto, os erros não podem se repetir na era digital, seja por descuido, descaso ou excesso de autoconfiança.

Prótese é precisão, e oclusão é biologia, tanto no analógico quanto no digital.

Referências

  1. Türp JC, Greene CS, Strub JR. Dental occlusion: a critical reflection on past, present and future concepts. J Oral Rehabil 2008;35(6):446-53.
  2. Wiechens B, Brockmeyer P, Wassmann T, Rödiger M, Wiessner A, Bürgers R. Time of day-dependent deviations in dynamic and static occlusion: a prospective clinical study. J Prosthet Dent 2022:S0022-3913(22)00353-5.
  3. Shalev-Antsel T, Winocur-Arias O, Friedman-Rubin P, Naim G, Keren L, Eli I et al. The continuous adverse impact of COVID-19 on temporomandibular disorders and bruxism: comparison of pre- during- and post-pandemic time periods. BMC Oral Health 2023;23(1):716.
  4. Saratti CM, Rocca GT, Vaucher P, Awai L, Papini A, Zuber S et al. Functional assessment of the stomatognathic system. Part 1: the role of static elements of analysis. Quintessence Int 2021;52(10):920-32.
  5. Greene et al. Creating patients: how technology and measurement approaches are misused in diagnosis and convert healthy individuals into TMD patients. Frontiers in Dental Medicine October 2023.